OS ACERTOS E OS RISCOS DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA

Os brasileiros vivem mais, evitam enfermidades uma vez consideradas graves e anteveem as inevitáveis em tempo de combatê-las. Trata-se de um retumbante triunfo civilizatório que devemos alardear como a boa notícia que é. A mesma ciência que nos levou a superar o formidável degrau da sobrevida há de nos acudir novamente, agora para acomodar os desdobramentos do feito. Se a sobrevida foi um desafio da saúde e da segurança pública antes, passa a ser um desafio das finanças e do direito depois.

A questão, no entanto, vem sendo excessivamente politizada, o que acaba por turbar bons argumentos, que se misturam aos ruins. Vendida como coisa integralmente boa e combatida como coisa integralmente ruim, a reforma não é, naturalmente, nem um, nem outro. Gravitar ao centro é a missão secular que ora ameaça devorar o Congresso Nacional. Mas o Parlamento viceja na sua vocação: absorver o dissenso, reconstituindo a verdade abafada entre os gritos dos oprimidos e os sussurros dos poderosos.

Um texto para a PEC recentemente emergiu (versão “g” de 12 de julho de 2019) e a mesa da Câmara experimenta toda a urgência que há em dar resposta àqueles que duvidam de nossa aptidão de encarar nossos problemas. Havendo tal texto sobre a mesa, é possível investigar algumas de suas disposições.

A reforma vem bem sucedida em suas grandes linhas: favorecer mecanismos para a administração do regime, ressalvar o equilíbrio financeiro e atuarial, aumentar a idade para aquisição do benefício programado e insistir na paulatina convergência de regras entre trabalhadores da iniciativa privada e pública.

Mas há riscos. Especificamente quanto à reforma dos servidores:

INGRESSO DE ESTADOS E MUNICÍPIOS NA REFORMA

O condicionamento da reforma em Estados e Municípios à iniciativa legislativa de cada um desses entes submete o Sistema Previdenciário a um esforço tanto extraordinário quanto ocioso. A conclusão de que se trata de medida que em nada favorece a condição fiscal das federadas brasileiras parece de clareza autoevidente.

Ademais, permite-se perigoso flanco para a balbúrdia jurídica em um cenário em que alguns entes façam adesão integral aos termos da reforma, outros formulem ressalvas – mesmo que vedadas – para que outros tantos não promovam adesão alguma, cada qual com datas diversas para início dos novos regimes. Em assim se permitindo, seriam inauguradas um sem número de relações jurídicas – tanto permanentes quanto transitórias -, exagerando a judicialização dos atos concessórios de benefício e conduzindo inevitavelmente à diversidade no tratamento dos Direitos em juízo.

Tal panorama não se conforma – de maneira alguma – com o intuito da Emenda e com o que ela se propôs a combater: a diversidade de tratamento entre os segurados. Anota a Constituição que a previdência é solidária e perseguirá o equilíbrio financeiro e atuarial: eis aí nortes seguros a buscar. A ressalva dos servidores que necessitam de meios de subsistência quando lhes faltar a força do trabalho merece guarida adequada no texto maior.

Ademais, é de se sublinhar que as eventuais Leis Complementares municipais editadas não poderiam ser objeto de controle concentrado no STF, convidando aventuras legislativas em seara de competência privativa da União: a reserva legislativa delineada ao inciso XXIII do art. 22 do texto maior pode constituir empecilho à existência do art. 36, II da Proposta de Emenda, na redação atualmente vazada.
Enfim, se, de plano, a própria constitucionalidade da Emenda é de se impugnar, ante a faculdade indevidamente entregue pelo art. 36, II do texto, o controle subsequente imporia o despedaçamento de um sistema que é vocacionado à unidade, como se tem sido reconhecido desde os priscos tempos dos primeiros legislados.

O DESCONJUNTAMENTO DO SISTEMA

A reforma instiga os próprios entes a se regularem em inúmeras passagens. Por exemplo, ao art. 40, §1º, I, para manutenção do benefício por invalidez, art. 40, §3º, para o cálculo de proventos, art. 40, §4º-A, para forma de cálculo de proventos, art. 40, §7º, para benefício assistencial, art. 40, §19, para concessão de abono de permanência, mas também ao art. 40, §1º, III, §4º-B, §4º-C, §5º além do já mencionado art. 36, II da própria emenda.
Possivelmente a vontade do legislador nacional seja recrutar e valorizar o legislativo local, encurtando um ciclo de esquecimento dessas relevantes estruturas de Estado. Mas imaginar que as comunidades locais não precisam ser protegidas de seus articuladíssimos grupos de interesse não parece razoável.

Sob a perspectiva do Direito Financeiro, diversas têm sido as interpretações que toleram a exclusão do gasto com inativos do cômputo de limites da despesa. Permitindo-se mais normatização local, o caminho fica franqueado para que o gasto com aposentados provoque os estertores do orçamento.

Ou seja, a par de recobrar parte do protagonismo de Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores em matérias de relevância nacional, o mecanismo não colabora para reequilibrar o gasto com a rubrica previdenciária e extravia a liderança da Secretaria da Previdência na capitania do Regime.

RECADO A MAGISTRADOS

Causa alguma controvérsia a modalidade “aposentadoria compulsória” do regime disciplinar de Magistrados, já que não deveria uma sanção administrativa ter sido atrelada à rubrica previdenciária. A reforma exclui a figura, mas na esteira desse movimento, também cria a faculdade de “aplicar outras sanções administrativas” a juízes diretamente pelo CNJ. Tal mudança parece não guardar nenhuma relação com o assunto da reforma.

Se o regime previdenciário brasileiro fica isolado quando comparado aos demais do mundo em suas regras, no caso específico dos Magistrados, nem tanto. É que um dos reflexos da estabilidade da Magistratura é cercar os julgadores de garantias. Assim é o caso nos Estados liberais que, alega-se, constituem o ideal a alcançar pela guinada ideológica que vivemos. Uma das razões para a declaração de independência norte americana, por exemplo, foi a interferência inglesa sobre os salários dos juízes na colônia.

Outro ponto da reforma pode ter um recado disfarçado ao primeiro grau. Em não havendo equilíbrio, é perfeitamente concebível o aumento da alíquota para financiamento do encargo adicional, daí a proposta de aumento da alíquota previdenciária. Entretanto, aumentar mais para uns do que para outros a pretexto de praticar justiça social não é nada mais senão redução salarial travestida. As contribuições não são impostos e não se submetem à progressividade que, ademais, já é implementada uma vez pelo imposto sobre a renda, que tem exatamente a mesma base de cálculo.

A alíquota progressiva de contribuição previdenciária, permitida ao art. 149, §1º, atinge principalmente a Magistratura que, remunerada por subsídio, não dispõe de formas para dissimular seus ganhos, que acabam tributados na inteireza, nem para auferir outras rendas, posto que impedida. Ao fim e ao cabo, a economia que se faz com essa medida específica para esse grupo específico de servidores no balanço geral da previdência é pífia, o que não se pode dizer de sua eficácia para aterrorizar e subjugar.

Na tessitura da reforma, interesses estranhos parecem ter logrado entrada e agora embaraçam a trama. Talvez exista tempo para o pequeno ajuste.

Alexandre Manir Figueiredo Sarquis é Professor da FIPECAFI e aluno do programa de Doutorado em Direito Financeiro da USP. Foi coordenador do livro “Previdência e Reforma em Debate” da editora Lualri.

Fonte: ESTADÃO

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  • 31 de outubro de 2019
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